“Faremos um povo de igual rebeldia” Missa dos Quilombos, uma (est)ética antropofágica?

Autores

  • Sebastião Lindoberg da Silva Campos

Resumo

O escritor brasileiro Oswald de Andrade, em muitos de seus escritos, havia colocado o desafio de se pensar uma ontologia nacional a partir de uma leitura  antropofágica da realidade histórica. A tese oswaldiana, baseada no traumático contato histórico civilizacional dos povos – e ainda que a experiência colonial na América tenha “imposto” à Europa uma revisão de seu conceito de Humanismo –, caminha numa proposta radical de revisão histórica que foi interpretada por muitos como devaneios poéticos. Para além de uma estética literária, é no corpo que se inscreve e se escreve a história. Se é verdade que, como dizia Oswald, “só a antropofagia nos une”, nos colocamos diante de um “olhar o mundo” a partir da perspectiva dos corpos que se encontram e se rechaçam mutuamente. Compreendendo a história nacional como esse embate de forças das relações de poder e subordinação que marcaram a constituição do país, a compreensão oswaldiana pode chegar a uma radicalidade de encontrar na antropofagia uma mediação única para um entendimento substancial da questão humana. Mas se a interpretação de um radicalismo reside numa incompreensão ou recusa de aceitação a tal desafio, não se pode negar que o protagonismo histórico executado na famosa, e não menos polêmica, Missa dos Quilombos permite novas avaliações e percepções sobre uma prática de vivência humana mais fraterna que mergulha na história brasileira para extrair daí seu material de reflexão. Sendo a síntese do encontro entre o corpo colonizador e o corpo colonizado, a Missa converte-se num campo de possibilidades. Sob o signo do chicote, açoite e sangue derramado que marcam a nossa herança a partir da escrita dos corpos no tempo histórico, a Missa dos Quilombos nos convida a um novo olhar sobre o humano e nossa própria história, assim sintetizada nas palavras de Dom José Maria Pires: “chegou o tempo de tanto sangue ser semente, de tanta semente germinar”. Celebrada na praça na qual séculos antes a cabeça de Zumbi fora exposta, a missa revestiu-se de uma simbologia ímpar que, para além de tentar sanar feridas crônicas de uma relação conflituosa, desafiava a uma reavaliação de suas próprias propostas reparadoras e do discurso cristão de alteridade. Revivendo na carne do povo negro os dramas históricos, a Missa dos Quilombos celebrava uma utopia que extrapolava os limites de uma estética ritualística, mas efetivamente propunha-se a uma ética humana. A escravidão escreveu uma das páginas mais brutais da história da humanidade e revelou o lado patológico do homem para com seu semelhante, deturpando o conceito de Deus caritas est. Revisitar esse ritual e evento nos permite lançar luzes sobre o conceito oswaldiano de antropofagia e sua “existência palpável da vida”, ressignificando, desta forma, a própria concepção cristã de alteridade, a qual requer, obrigatoriamente, o corpo em sua constituição.

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Publicado

2019-11-26

Como Citar

Campos, S. L. da S. (2019). “Faremos um povo de igual rebeldia” Missa dos Quilombos, uma (est)ética antropofágica?. Annales Faje, 4(3), 139–150. Recuperado de https://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/annales/article/view/4324